quinta-feira, 31 de agosto de 2017

QUE ENTERREM MEU CORAÇÃO ÀS MARGENS DO AMAZONAS

QUE ENTERREM MEU CORAÇÃO
ÀS MARGENS DO AMAZONAS
Merlânio Maia

Havia uma mata virgem
Que já foi pulmão do mundo
Com tanta diversidade
De um bioma tão profundo
Que invejava as nações
Que já mataram os pulmões
Jogando a vida nas lonas
E aqui vê repetir a ação
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!

É o grito do seu poeta
Ao ver o fim da riqueza
Devastarem tanta espécie
Destruindo a natureza
E os seus bilhões de anos
Construído em vários planos
Num decreto virar zona
Da mais vil exploração
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!

A ganância toma conta
O governo é inconsciente
E a floresta amazônica
Assassinada friamente
E as árvores centenárias
Fauna e flora necessárias
Viram cinzas nas matronas,
Na ganância do ladrão
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!

Políticos irresponsáveis
Rapineiros de carteira
Que não valorizam a vida
Nem a nação brasileira
Conjuram pelas caladas
Votam pelas madrugadas
Como as hienas matronas
Vampirizando o torrão
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!

Reservas ambientais
Completa de animais
De plantas bicentenárias
Vão virar móveis, jornais,
Na ânsia de minerar
Vão todo um mundo matar
E ninguém ao rei destrona
Será o fim deste pulmão
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!


Que desperte Chico Mendes
E os mártires seringueiros
Que acordem todas as tribos
Dizimadas por grileiros
Txucarramãe e os tupis,
Tupinambás, guaranis,
Os bororos e as turronas
Amazonas em nação
Pra que se expulse o ladrão
Que enterrem meu coração
Às margens do Amazonas!


terça-feira, 29 de agosto de 2017

GENTILEZA

GENTILEZA

Meuzamô, disse o profeta
Que o que a gentileza gera
É muito mais gentileza
Onde a gentileza impera
Então sejamos gentis
Fazendo o outro feliz
Também tenhamos certeza
De que tal retorno vem
Para cada ação do bem
Seja aqui ou mais além 
Em forma de Gentileza!
Merlanio Maia


BOM DIA MEUZAMÔ!

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

DONAS DE AMANHÃS

Merlânio Maia


As minhas crianças
São cheias de encanto,
De alegre acalanto,
De brilho e calor...
Tão especiais
A todas crianças
De cabelos, tranças...
Repletas de amor

Suas gargalhadas
Ecoam no espaço
Dançam no compasso
Vivem a cantar
Fazem traquinagens
Gritam, soltam pum,
Sem motivo algum
Saem a requebrar

Todas são carecas
Doces bagunceiras
Suas brincadeiras
Também tão iguais
Às da criançada
De todas as cores
Também sentem dores
São normais, normais!...

São minhas Amandas,
Joãos, Daniéis,
Lucas, Isabéis,
Thiagos, Luanas,
Rodrigos e Carlas,
Rafaéis, Mayaras,
Virgínias e Maras,
Ednas e Anas...

Mas não são tão livres
Pois o seu futuro
Se esbarra num muro
Branco hospitalar
Elas portam câncer
Lutam todo o dia
Contra a tirania
Que as vem devastar

Luta dura, infame,
Luta fatigante
Luta tão gigante
Luta desigual
Luta tão constante,
Luta bruta e forte,
Luta contra a morte
Luta desleal!


E tome coragem,
Tome valentia,
Pois a terapia,
As enchem de ais
QT, ânsia, enjôo,
Agulhas e exame,
Pra que a morte infame
Não vença jamais

São tão pequeninas
E as vejo vencendo,
As vejo crescendo,
E as vejo tão sãs
São os meus amores
Meninos, meninas,
Crianças divinas
Donas de amanhãs!

DESPERTA E LUTA BRASIL

Resultado de imagem para bandeira brasileira arte
DESPERTA E LUTA BRASIL
Merlânio Maia

Quem nos salvará dos monstros
Que infectaram o país?
Quem romperá com o sistema
Que faz meu povo infeliz?
Quem abrirá as comportas
Da nação das mãos já mortas
Dessa justiça servil
Quem abrirá novo plano
Para um país soberano?
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Quem acordará quem dorme
Lá deitada eternamente
Em berço esplêndido de lodo
Ao som do mar já doente?
Quem desperta esta nação
Que sonha alienação
Desde que o branco invadiu?
Quem nos salvará do bando
Secular em seu desmando?
DESPERTA E LUTA BRASIL!

É bem grave este momento
Que um governo apodrecido
Sem amor, patriotismo
Teima em tudo ver vendido
Faz da floresta um ativo
E compra o legislativo
Vende a pátria que o pariu
Esquarteja a nação fria
E a vende por ninharia
DESPERTA E LUTA BRASIL!

O poder infectado
Só te ratos e baratas
Ladrões por todos os lados
De palitós e gravatas
Quais urubus em carniças
Com as almas enfermiças
Corrompidos na raiz
Vampiros com mala e grana
Numa sanha desumana
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Enquanto lá nas palhoças
Nos sertões e nas cidades
A miséria deita e rola
Roubando vida à vontade
A criança sem futuro
Escondida no monturo
Bicho da besta no cio
Culpa a Deus por sua ausência
E se abraça a violência
DESPERTA E LUTA BRASIL!

E a miséria se espalha
Nos campos de seca atroz
E esta ceifa a vida a esmo
Sem ninguém que lhes dê voz
Hospitais sem mais aporte
Quais pirâmides da morte
Enfrentando o desafio
De escolher quem vive ou morre
Roubaram quem os socorre
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Escolas sucateadas
Despertam mais violência
Sem o certo aprendizado
Das letras e da ciência
Não tem ética nem moral
Jovens se abraçam com o mal
Que a violência hoje urdiu
Também roubaram os insumos
Abrindo os porões sem prumos
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Os jovens cheios dos sonhos
Dos pais, perdem a inocência
Sem educação completa
Vão cair na delinquência
Não mais serão os doutores
Nem médicos nem professores
Que a corrução engoliu
Também serão cooptados
E nos guetos viciados
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Nas ruas dos grandes centros
O trânsito é infernal
Não se investe em coletivos
E o caos se faz total
Não tem metrô e nem trem
Não há decência também
Do poder público senil
E a gente igual boiada
Segue triste e alienada
DESPERTA E LUTA BRASIL!

A violência nas ruas
Nas casas e em todo canto
Abre as asas vampirescas
Cobrem com seu negro manto
E a morte segue o enredo
Matando a mais frágil cedo
Sem ter justiça viril
Que dê um basta decente
Que nos salve desta gente
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Que o povo desperte e acorde
Que o Brasil com consciência
Possa banir mau político
Que enrica com a violência
Que rouba dos inocentes
O futuro e os descendentes
Só pra encher seu barril
Prenda-se este maldito
E a nação dê um grande grito
Pra salvar o povo aflito:
DESPERTA E LUTA BRASIL!

Brasil dos inconfidentes
Brasil dos libertadores
Dos abolicionistas
Meu Brasil dos sonhadores
Que deitado eternamente
No berço esplêndido dormente
Grande Pátria varonil
Acorda e expulsa o estrovo
Mostra o valor do teu povo
Sê soberana de novo
DESPERTA E LUTA, BRASIL!


quinta-feira, 24 de agosto de 2017

ÁGUA É TÔNICO DA VIDA

ÁGUA É TÔNICO DA VIDA
Merlânio Maia

Água clara, água doce
Que da pequena nascente
Já nasce nos aguando
Matando a sede da gente
Descendo no desaguar
É riacho é rio é mar
E desde a fonte incontida
Ela é água de beber
Ela a água de viver
Que a água é o tônico da vida

Pra sustentar o planeta
Fez-se gigante oceano
Três terços deste planeta
É de água. O ser humano
Tem em si também três terços
Que a água é o nosso berço
Nossa medida e comida
Água é estrada é diversão
Água é cura e salvação
Que a água é o tônico da vida

Há um oceano na terra
E um outro imenso no céu
Água que sobe e é nuvem
E chove como escarcéu
Mas pode ser tempestade
Neve granito que invade
E a invernada é conhecida
Como a mão de Deus descendo
Que esfria a terra chovendo
Que a água é o tônico da vida

E todo ser necessita
Da água no dia a dia
Quando é seca e o vivente
Não a tem por companhia
Tem que ligeiro ir-se embora
Tortura entristece e chora
E procura outra saída
Pra não perecer de sede
E seguir pra cova na rede
Que a água é o tônico da vida

A água é um dom de Deus
Que quando criou o mundo
Criou a água e a vida
Deu-lhe o sentido fecundo
De fertilizar a terra
Brotar de cima da serra
E ser o cântico na descida
Do homem grato ao Pai
Presente que do céu cai
Que a água é o tônico da vida

Mas os seres egoístas
Gananciosos inconscientes
Usam mal a própria água
Pelo poder simplesmente
Matam de sede o pequeno
Guerreiam botam veneno
Nesta bênção prometida
É o mal o poder dinheiro
E a água vira aguaceiro
Que a água é o tônico da vida

Desmatam assoreando
Secam rios criam desertos
Na ânsia louca das cifras
Em satânicos concertos
E aquilo que os juntaria
Unindo o planeta um dia
Torna-se dádiva perdida
Só verão a coisa preta
Quando extinguir o planeta
Que a água é o tônico da vida

Água que brota da fonte
No riacho serpenteia
Num crescendo e é cascata
No rio é estrada cheia
Na grandeza dos seus planos
Aprofundam oceanos
Evaporam e na descida
É a bebida mais pura
Do abismo até às alturas
Mantém viva a criatura
Que a água é o tônico da vida


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Castro Alves, 1871. Última entrevista do poeta da liberdade


Redação
Vale a pena lembrar a última entrevista de Castro Alves, concedida ao escritor e professor, Augusto Sérgio Bastos, em 1871, no Palacete do Sodré, em Salvador. Cecéu, como o poeta dos escravos era chamado pelos amigos baianos, morreu às 15:30h do dia 6 de julho de 1871, um mês após haver concedido essa franca e comovente entrevista, onde aborda temas ainda hoje atuais, como a escravidão e a liberdade.
 Quem é o poeta Castro Alves?



Sou um homem que escreve e declama seus poemas. Por amor, por compulsão e por herança. Um poeta brasileiro nascido em 14 de março de 1847 lá na fazenda Cabaceiras, sete léguas distante de Curralinho. Um baiano do sertão. Meus pais foram o doutor Antônio José Alves e dona Clélia Brasília da Silva Castro, que também nasceu em um 14 de março.
A família mudou para Salvador quando eu tinha sete anos de idade. Aqui completei o curso primário e fiz o ginasial. Aos 15, em 1862, eu e meu irmão José Antônio fomos morar no Recife para fazer o Curso Anexo, um ano de aulas preparatórias que habilitavam às provas da Faculdade de Direito, onde fiz o 1º e o 2º ano. Lá, ainda em 62, pela primeira vez tive um poema publicado pela imprensa, “A destruição de Jerusalém”, no Jornal do Recife. No ano seguinte saiu no nº 1 de um jornal acadêmico, chamado A Primavera, o meu primeiro poema contra a escravidão: “A canção do africano”. Em 68, fui para São Paulo continuar meus estudos jurídicos. Completei apenas o 3º ano, sem bacharelar-me por conta de problemas relacionados à saúde.
Mas as publicações se sucederam, tanto no Recife como em Salvador, no Rio de Janeiro e São Paulo; muita vez em seqüência às declamações que eu fazia nas ruas, nos saraus e nos teatros, sempre com grande sucesso, diga-se de passagem. Alguns desses versos, junto com muitos inéditos, hoje fazem parte do meu livro Espumas flutuantes, primeiro e único até agora, e que foi lançado em outubro do ano passado, aqui mesmo na Bahia, para onde voltei no final de 69.
Fale um pouco mais sobre sua família e a infância em Salvador
Éramos muitos irmãos: José Antônio, Zezinho, o primogênito, poeta que se suicidou aos 19 anos; eu, Antônio Frederico de Castro Alves, era chamado de Cecéu pelos de casa e pelos amigos; João, que faleceu recém-nascido; Guilherme, o quarto, também poeta; aí vem a primeira mulher, Elisa; depois Adelaide, a Sinhá, minha preferida, mas que ninguém nos ouça; e Amélia, uma bela poetisa. Bem mais tarde, Cassianinho, nascido das segundas núpcias de meu pai.
Papai foi um médico famoso. Estudou na Europa, foi professor da Faculdade de Medicina, homem de talento artístico apreciável, com o que conseguiu grupar em nossa casa uma galeria de pinturas estrangeiras e nacionais de grande fama. Dessa paixão resultou fundar em 56, aqui na Bahia, a Sociedade das Belas-Artes. No lar, essa influência se exerceu na nossa educação artística: todos inclinados à música, ao canto, ao desenho, à pintura, às letras, favorecendo disposições da natureza que seriam consagradas. Mas papai e mamãe tinham pouca saúde. Perdi-os cedo, ela de tuberculose, em 1859, com apenas 34 anos de idade, e papai há cinco anos, aos 48.

Voltemos ao ano de 1854, quando fomos morar na capital, no pequeno sobrado da Rua do Rosário no 1. Essa casa, que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo que, louco de ciúmes, a fulminou com uma bala de ouro. Eu, menino, imaginava a cena e tinha muito medo. Ainda bem que logo depois nos mudamos.
Assim que chegamos a Salvador, fui estudar no Colégio Sebrão, uma escola tradicional, e depois no Ginásio Baiano, de conceitos pedagógicos avançados para a época: estudávamos várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos e ainda por cima éramos incentivados a participar de torneios literários. Para mim, que já trazia o amor à arte cultivado pela família, foi uma espécie de preliminar, desculpem a imodéstia, para a glória futura. Celebrávamos principalmente as datas cívicas, o que me deixava envaidecido, pois meu avô materno, José Antônio da Silva Castro, foi um dos heróis da independência da Bahia, que só foi conquistada em 2 de Julho de 1823. É que em muitas províncias, como o Senhor sabe, os portugueses não acataram a proclamação do Sete de Setembro e queriam nos manter atados à Coroa lusitana. Na Bahia, meu avô ajudou a derrotar as tropas inimigas, para assim confirmar a independência do Brasil. Ele foi condecorado por bravura no comando de um batalhão de voluntários, por ele mesmo criado. Vou lhe contar uma coisa que pouca gente sabe: foi nesse batalhão que, sob suas ordens, lutou a heroína baiana Maria Quitéria. Ainda vou escrever um poema em homenagem a essa grande mulher.



“O povo – esse condor gigante – sacudindo as longas asas
pairou na ordem social por sobre a realeza,
na ordem científica por sobre a autoridade.”


Como o Senhor vê a poesia nesta segunda metade do séc. XIX?
Olhe bem. A poesia na terra dos Andradas, dos Pedros Ivos, e dos Tiradentes deve ser majestosa como as matas virgens da América; arrojada como seus rios gigantes; livre como os ventos que passam gementes por suas várzeas, e que zurzem os costados pedregosos dos seus gigantes de granito. A poesia enfim deve ser o reflexo desta terra. Isto no que toca à natureza, é claro.
No que toca às idéias desta metade de século, eu diria que a poesia deve ser o arauto da liberdade – esse verbo na redenção moderna – e o brado ardente contra os usurpadores dos direitos do povo.
Quanto a sua forma, a literatura, sendo a expressão da humanidade, libertou-se dos preceitos asfixiadores da escola clássica – essa jaula do pensamento – assim como a humanidade despedaçara o feudalismo – essa jaula da dignidade popular. O povo – esse condor gigante – sacudindo as longas asas pairou na ordem social por sobre a realeza, na ordem científica por sobre a autoridade. O espírito popular tem sido iluminado pelos luzires do cometa da civilização.
Tudo tende a idealizar-se. No entanto, lanço uma censura a dois erros, que em geral permanecem em nossa literatura, e neles eu sei que a minha poesia não está:
Um – a falta de brasileirismo nas composições. O segundo erro, que ainda lavra, especialmente na Bahia, é o classicismo. Deus me livre de maldizer das obras-primas que a antiguidade nos legou. Não. Homero, Dante, Virgílio e outros hão de ser sempre admirados. Mas não queirais, homens da atualidade, mandar, como primor de escultura, uma cabeça de esfinge para a Exposição, nem apresentar nos banquetes de Napoleão III a paródia dos vasos soterrados de Pompéia… passou esse tempo… A poesia hoje é Byron, Barthélemy, Lamartine, Victor Hugo – esses Cristos humanos.



O poeta é às vezes um corcel sem freios…
Eu tenho consciência de que faço alguns poemas
para voz alta, e não para leitura com um chá, no
aconchego das cadeiras de balanço.


De que forma o Senhor situa a sua obra dentro deste contexto?
É muito difícil a um poeta situar sua própria obra no contexto de uma literatura. Talvez possa dizer que segui um caminho que é normal a todo escritor: o de fazer com que a vida e a obra entrem em acordo e possam viver bem juntas.
Olhe bem. Hoje, a palavra da poesia, além de ser íntima, também deve ser cívica. Tenho o sangue militar do meu avô e cheguei até a me alistar no Batalhão Acadêmico de Voluntários que foi à Guerra do Paraguai, mas nunca fui um apologista da guerra. Amo sim a minha pátria, luto pela abolição da escravidão, canto os feitos heróicos, as batalhas vitoriosas contra a opressão e confesso o meu amor em tom vibrante; só em louvor ao Dois de Julho escrevi cinco poemas. Muitos dizem que minha obra está composta de uma parte política e de uma parte lírica. Penso que vigora sempre o mesmo amor à humanidade, sob roupagens diversas: amor coletivo e amor pessoal, e não saberia dizer qual o mais importante.
Acho que o poeta deve falar aos corações. Eu falo. Mas, não é com sussurros que se incendeia o público; é com entusiasmo, dramaticidade, retórica. O poeta é às vezes um corcel sem freios… Eu tenho consciência de que faço alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá, no aconchego das cadeiras de balanço. Algumas vezes, anoto ao lado do texto: “Não se publica”. Não sei se será publicado, pois tenho a certeza de que o poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é nunca o dono do destino do poema.
Particularmente, acho exagerado o gosto pelo doentio que os poetas da geração anterior a minha desenvolveram. Eles estavam voltados para eles mesmos, amavam a musa distante, idealizada, intocada e etérea. A minha amada é de carne e osso (o poeta sorri). Eu aposto no amor, na vida; às vezes perco, às vezes ganho… Deixo aos críticos do futuro o julgamento do meu trabalho.
Que figuras exerceram influência na sua formação de escritor?
Tudo o que o escritor vê, vive ou lê o influencia. Assim, sou filho de Horácio, de Byron, Barthélemy, Lamartine, Musset, do grande Hugo principalmente… Aprecio Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, mas se tivesse que escolher apenas dois brasileiros, citaria dos contemporâneos, meu amigo Fagundes Varela e dos passados, o Casimiro de Abreu.



Ser chamado de “poeta dos
escravos” é uma honra. Acho,
porém, que não diz tudo; sempre
quis ser “O poeta da Liberdade”.


O Senhor está começando a ser chamado “O poeta dos escravos”. Como se sente?
Eu me orgulho do epíteto. Estou, inclusive, na fase final de negociações para a impressão de meu livro Os escravos, que até o final do ano será publicado. A escravidão é uma das mazelas, talvez a mais horrenda, que devemos combater em prol da liberdade. É certo que, desde 1850, instituíram-se pesadas penas para o tráfico negreiro, já abolido pela legislatura de 31, mas ainda vigente. Há dois anos foi proibida a venda de seres humanos em pregão público e até o fim deste ano – não sei se o Senhor sabe – será votada a Lei do Ventre Livre. Mas é pouco. Muito pouco.
Sempre fui devotado às causas sociais. Fundei, com Rui Barbosa – meu antigo colega do Ginásio Baiano – e outros alunos da Faculdade de Direito, a Sociedade Abolicionista do Recife. Esse pendor abolicionista vem do berço. Lembro de papai a reclamar, sempre, do tratamento cruel que era dado ao negro. O amor que eu tive e tenho pela minha bá, que já se foi, a negra Leopoldina, minha ama de leite, minha segunda mãe, a me contar as histórias de senzalas, mucamas e amores proibidos… O meu tio, o alferes João José, herói da Guerra do Paraguai, brincando comigo de cavalinho, montado em seus joelhos, dizendo-me: “A liberdade, filho, é o maior bem do mundo”. Ah! Como essas coisas ainda me comovem…
Ser chamado de “poeta dos escravos” é uma honra. Acho, porém, que não diz tudo; sempre quis ser “O poeta da Liberdade”. E para mim, Abolição e República são palavras quase irmãs: uma puxa a outra, naturalmente. Tanto que, em paralelo à minha luta pela libertação dos escravos, participei também de alguns comícios republicanos. Lembro-me bem de um deles, dissolvido pela polícia, quando criei de improviso os versos de “O povo ao poder” (nesse momento o poeta abre um sorriso e levanta-se, com esforço, da cadeira de balanço austríaca). A segunda estrofe desse poema começa com dois versos que agitaram a multidão, aos gritos e assobios (o poeta de pé, com a voz já rouca e entrecortada por um pigarro renitente):


A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!… pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu…
(um acesso de tosse interrompe a fala;
ele se senta novamente, e com dificuldade termina a estrofe)
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos…
Deixai a terra ao Anteu.
Desculpe-me, Senhor… Desculpe-me… (aparentemente refeito) Prossiga, prossiga…
Além dos comícios republicanos e da campanha abolicionista, é sabido que o Senhor tem participado de debates sobre a liberdade de imprensa e de muitos outros movimentos civis, como a luta pelo voto feminino. Por outro lado, as discussões literárias também não foram poucas. Fale-nos sobre sua polêmica com o poeta Tobias Barreto.
O Tobias? Isso é coisa do passado, não tem mais importância… Nem sei se vale a pena voltar ao assunto. Mas o que posso dizer?… Vamos ver…
Começamos como amigos – temos, inclusive, poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas, tornamo-nos rivais e acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias. Discordamos em quase tudo, tanto na poesia quanto no teatro. Olhe que nossos desencontros se acaloraram a partir de 66, quando ele teve o desplante de, em público, dizer que a atriz Adelaide Amaral era superior a minha amada D. Eugênia Câmara, um talento fulgurante que Portugal nos legou; inigualável, como o Brasil jamais tivera oportunidade de assistir.
O Senhor Tobias Barreto é feio, velho, escreve mal e declama pior ainda. Não conhece a língua que fala, o significado das palavras; já o aconselhei a fazer, de quando em quando, uma viagenzinha ao Morais. Nos recitativos fica nervoso, tem um jeito desastrado, não controla a voz. Não possui o domínio cênico que eu tenho, se veste mal. Eu entro no palco vestido de negro, chique, com uma flor na lapela, óleo nos cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz no rosto, para parecer mais pálido. Começo logo com uma das minhas bombas “O século”, “Pedro Ivo”, “Visão dos mortos”…, com resultado previsto e certo: a platéia me ovaciona. Lembro-me de um sarau em São Paulo , organizado pelo Arquivo Jurídico, no Salão Concórdia. Nessa noite todas as honras foram minhas; o entusiasmo tocou ao delírio, quando arrematei a última estrofe de “Visão dos mortos” e, a pedido geral, encetei “O livro e a América”. Se algum dia obtive um triunfo, não foi noutro lugar. Até a senhora do cônsul inglês Richard Burton veio entusiasticamente dizer-me: “Mim gostar muito de sua recitativa” (rindo e imitando um sotaque inglês).
Atualmente não tenho mais debatido com o Tobias Barreto. Como o Senhor sabe, pouco tenho saído de casa. A minha última declamação em público foi, se a memória não me falha, em 10 de fevereiro deste ano, no salão nobre da Associação Comercial da Bahia, quando se realizava ali um meeting em favor das famílias francesas sacrificadas pela guerra franco-prussiana. Eu recitei o poema “No meeting du Comité du Pain”, escrito no dia anterior. Fiz especialmente para a ocasião.
Aproveitando a sua lembrança, o Senhor poderia nos falar da grande atriz D. Eugênia Câmara?
A minha admiração pela atriz D. Eugênia Câmara se confundiu com meu amor pela mulher Eugênia. Quando a vi pela primeira vez, no palco do Teatro Santa Isabel, no Recife, eu tinha 16 anos e ela 26. De minha parte, amor à primeira vista. Ela era a estrela do drama Dalila, de Octave Feuillet. Difícil descrever o impacto que a presença dela exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais importante da minha vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão, ao mais profundo fundo dos cafundós do inferno. E ainda mais, o que muitos não sabem: é poetisa. Já tem dois livros publicados.
Escrevi para ela o drama Gonzaga ou A Revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição, paixões… em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se confundia com a própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o papel principal. Meu sonho era vê-la em cena interpretando meu texto.
O nosso amor foi sempre tumultuado. Em 66, após um longo período de indecisões e recuos, que nunca soube se eram meus ou dela, finalmente consegui arrancá-la do empresário com quem vivia, e levei-a junto com a filha, para morar comigo num subúrbio do Recife. Nosso ninho de amor… Dediquei-lhe muitos poemas… Ah! Bons tempos aqueles…
No ano seguinte, fui para a Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir encenar o Gonzaga em Salvador. O que, de fato, aconteceu no dia 7 de setembro, no Teatro São João, tendo à frente do elenco Eugênia no papel de Maria, a Marília de Dirceu. Foi uma brilhatura como há poucas! Fui chamado à cena depois de cada ato, sob estrondosa ovação. Não satisfeita, a multidão carregou-me em triunfo, sobre os ombros, até minha casa. Tive um triunfo como não consta que alguém tivesse na Bahia. Era a glória, mas era a glória baiana. Até aí a alegria do sucesso e o amor de Eugênia me completavam, mas eu queria a consagração nacional…

A noite encantada ao conhecer sua amada em cena, no Recife.


Eram cada vez mais constantes as nossas desavenças.
Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações.
Sopravam-me histórias de adultério.


Foi por isso que o Senhor resolveu ir para São Paulo?
Sim, sim. Foi com essa intenção que decidi continuar os estudos de Direito em São Paulo , interrompidos quando viemos para Salvador. Eugênia foi comigo. Incluí no roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde conheci o grande escritor José de Alencar. Chegamos a São Paulo em março de 68, a terra de Azevedo, cidade das névoas e mantilhas, ainda acanhada e provinciana, onde não há senão frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha, um tédio infinito. Entretanto prefiro São Paulo ao Recife, apesar das péssimas recordações daquele tempo, pois foi lá que o nosso amor chegou ao fim. O meu objetivo era terminar os estudos na Faculdade do Largo de São Francisco e o de D. Eugênia retornar aos palcos. No início retomamos a vida intelectual e boêmia, freqüentando saraus e salões, sempre com muito sucesso. Porém, rapidamente, o nosso relacionamento se deteriorou. Eram cada vez mais constantes as nossas desavenças. Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações. Sopravam-me histórias de adultério. No entanto, sei que ela me amou, como sei que, talvez, meu amor tenha sido insuficiente para sua paixão. Não a recrimino. Em determinado momento, largou a carreira para me seguir. Depois, me largou para seguir a si própria. Rompemos em 68 e a última vez que a vi foi no ano seguinte apresentando-se no Teatro Fênix Dramática, no Rio de Janeiro, quando pude lhe oferecer meus derradeiros aplausos. Despedi-me de Eugênia com a poesia “Adeus”, que termina assim (acomodando-se na cadeira):


Quis te odiar, não pude. – Quis na Terra
Encontrar outro amor. – Foi-me impossível.
Então bendisse a Deus que no meu peito
Pôs o germe cruel de um mal terrível.


Sinto que vou morrer! Posso, portanto,
A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais teu amor! Porém minh’alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua.
E Eugênia me respondeu com uma outra e que sei de cor. Vou dizer-lhe a primeira e a derradeira das 14 estrofes (a voz um pouco mais baixa):


Adeus, irmão desta alma, digo-te Adeus!
Mas deixa que eu evite esse – jamais! –
Que o céu se compadeça aos rogos meus
E um dia cessarão teus e meus ais!

Adeus! Se um dia o Destino
Nos fizer ainda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! Sempre me hás de achar.

Como foi seu contato com José de Alencar?
Ah! Esse foi um dia inesquecível: 17 de fevereiro de 1868. Levei uma carta de apresentação do estadista baiano Dr. Joaquim Fernandes da Cunha, amigo de meu pai e padrinho da minha irmã Amélia. Visitei Alencar no Rio, como já lhe disse. Ele residia lá nos cerros da Tijuca. Segundo suas palavras, lugar puro e são, montanha encantadora que a natureza colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão. E foi lá que o primeiro literato brasileiro provou-me que a ninguém cedia em cavalheirismo e urbanidade.
Sabendo que tocava numa corda sensível do mestre, além de declamar alguns poemas, li para ele o Gonzaga. Meu anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro brasileiro, mesmo tendo fracassado na tentativa. Ele pregava um teatro baseado em nossa História – exatamente o que eu fizera, ao invocar em meu drama a Inconfidência Mineira. A receptividade foi muito boa, a ponto de Alencar recomendar-me a outro talento que se firmava na literatura fluminense: o jovem Machado de Assis, que me visitou no domingo de carnaval. O resultado desses encontros se traduziu nas crônicas publicadas no Correio Mercantil, a de Alencar em 22 de fevereiro e a de Machado em 1o de março, ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Saiba que ainda guardo comigo esses exemplares do Correio.



Então busquei ajuda médica no Rio de
Janeiro e o diagnóstico foi implacável: teria
que amputar a perna esquerda no seu terço
inferior. Devido ao meu estado debilitado,
a intervenção cirúrgica se daria sem
anestesia, pois a cloroformização seria perigosa.


Quando e por que o Senhor decidiu deixar o sul do país e retornar à Bahia?
Devido a meus problemas de saúde; não ia nada bem. Quando me separei de Eugênia, a minha sorte piorou. Não sai da minha mente o fatídico dia 11 de novembro de 68, em que para espairecer minha solidão dirigi-me ao Brás, onde costumava caçar; era um mato cerrado, animais em abundância. Fui saltar uma pequena valeta e um disparo da espingarda atingiu-me o pé. Como todos sabem, surgiram complicações no ferimento e os antigos padecimentos pulmonares acordavam, impressionantes. Então busquei ajuda médica no Rio de Janeiro e o diagnóstico foi implacável: teria que amputar a perna esquerda no seu terço inferior. Devido ao meu estado debilitado, a intervenção cirúrgica se daria sem anestesia, pois a cloroformização seria perigosa. Se não operasse poderia morrer; então reuni todas as minhas forças e dei a autorização aos médicos, em tom de blague, disfarçando sob o riso, a dor física e moral da mutilação que deveras sentia. Ainda lembro de minhas palavras: “Corte-o, corte-o doutor… ficarei com menos matéria que o resto da humanidade”.
A convalescença foi demorada, agravada pela tísica renitente. Após alguns meses consegui levantar-me com a ajuda de um pé de madeira e apoiado em muletas. Porém , não me entreguei ao infortúnio. Nesse período de recuperação, estive hospedado na casa de meu grande amigo Luís Cornélio, cercado de carinho e atenção. Não deixei de escrever e recitar meus poemas para o pessoal da casa e para as bonitas moças que me visitavam e inspiravam. É… Não foram tão maus aqueles tempos (risos). No entanto, os meus pulmões não iam nada bem; acessos de tosse e febre deixavam-me constrangido. A saudade da minha pátria e a necessidade de cura em outro ambiente me fizeram retornar ao aconchego da família. Em novembro de 69, deixei o Rio de Janeiro. A travessia, transposta a enseada maravilhosa da Guanabara, sugeriu-me, com a saudade e o desengano, a idéia de reunir os meus poemas num volume que denominei Espumas flutuantes. Os meus versos eram as espumas que se formavam, flutuando à volta do navio. Essa lembrança está relatada no Prólogo do meu livro.
Quais são seus planos para o futuro?
Como já lhe disse, estou com Os escravos pronto, deve sair até o final do ano ou, no máximo, no princípio do ano que vem. A cachoeira de Paulo Afonso, livro de poemas, também já está acabado. E quero publicar o texto do meu Gonzaga, que já viajou por todo o Brasil, e, como o Senhor sabe, com grande sucesso de público e de crítica. Infelizmente nos últimos tempos não tenho trabalhado muito, a minha saúde não anda boa, e os médicos e as manas não querem que eu faça esforço. Para dar-lhe esta entrevista, tive que impor a minha autoridade de irmão mais velho (risos).
Mas Deus vai me dar ânimo, pois tenho planos de voltar a declamar em público, no máximo daqui a um mês. Já encomendei até um novo terno preto, bem cortado, pois estou um pouco mais magro e quero me apresentar bem. Se Deus quiser.

Augusto Sérgio Bastos
é professor e escritor

Nota: A entrevista acima é uma obra de ficção,
embora todas as respostas sejam verdadeiras.
Foram baseadas nas cartas e entrevistas
do poeta Castro Alves.

FONTE: http://outrabahia.com.br/secoes/castro-alves-ultima-entrevista-do-poeta-da-liberdade/